Páginas

3/30/2008

IGUALDADE

Igualdade

Que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo?
Nada. Nenhum animal depende de seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade que se chama razão, qual foi o resultado? Haver escravos em quase toda a terra.
Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o globo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e capros monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos sendo os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxilia-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes aves e répteis, tão feliz como eles seriam o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para que servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço?
Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distâncias.
Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem precisões. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem. O Verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência. Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua santidade. Duro porém é servir um ao outro.
Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer seus braços à rica para ter pão. A outra vai ataca-la e é derrotada. A família servente é fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos.
Impossível neste mundo miserável, que a sociedade humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimido. Essas duas classes se subdividem em mil outras, essas outras em sem conta de nomes diferentes.
Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir toda a miséria da própria situação. Quando a sentem, porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras desfecham com a submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no Estado. Digo no Estado, porque o mesmo não se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre subjugara a que, embora mais rica, tiver menos coragem.
Todo homem nasce com forte inclinação para o domínio, para riqueza, prazeres e sobretudo para indolência. Todo homem, portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer, ou pelo menos só fazer coisas muitos agradáveis. Vedes que com estas excelentes disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia não se invejarem.
Tal como é impossível o gênero humano substituir, a menos que haja infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que um homem satisfeito não deixará sua terra para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.
Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar em que ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente: Este país é tão um e tão mal governado que vedamos a todo o indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor: infundir em todos os vossos súditos o desejo de permanecer em vosso Estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir.
Nos íntimos refolhos do coração, todo homem tem direito de crer-se de todo ponto igual aos outros homens. Daí não segue dever o cozinheiro de um cardeal ordenar a seu senhor que lhe faça o jantar; pode todavia dizer: “Sou tão homem como meu amo; nasci como ele, chorando; como eu, ele morrerá nas mesma angústias e com as mesma cerimônias. Temos ambos as mesma funções animais...
Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo no Estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em toda parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar em suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte.
VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Coleção obra-prima de cada autor. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 295-297

Nenhum comentário: