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11/24/2008

A Célebre Democracia Desconhecida

Paulo Ghiraldelli Jr. O Filósofo da Cidade de São Paulo
A Célebre Democracia Desconhecida
Paulo Ghiraldelli Jr.
Quando as tropas dos Estados Unidos deixaram o Vietnã, o cartunista
brasileiro Henfil fez uma tira em quadrinhos interessante, que expressa
bem, até hoje, o espírito de uma boa parte dos intelectuais brasileiros –
ao menos o dos professores universitários das áreas de humanidades. No
primeiro quadrinho, o personagem principal ouvia a notícia da saída das
tropas. No segundo, ele aparecia com um rosto de preocupação.
Preocupação? Não deveria comemorar? No terceiro e último quadrinho o
personagem perguntava: “para onde irão agora as tropas?”.
Esta é a idéia de uma boa parte dos filósofos brasileiros a respeito dos
Estados Unidos. Esse tipo de visão, que só nas aparências é crítica, tem
sido uns dos fatores de desestímulo aos estudantes de filosofia, que os
afasta da leitura dos professores norte-americanos e, então, os leva para
longe do debate mais atual sobre a filosofia política.
Esses professores são os que favorecem a manutenção do Brasil em uma
situação de descompasso intelectual. Fazem seus alunos aceitarem
incondicionalmente os livros de Paris, Berlim e Roma sem perceberem
que os europeus, eles próprios, agem diferente. Contemporaneamente,
os europeus avançam culturalmente lendo o que se faz em Nova York.
É claro que nem todo pensador libertário brasileiro desconheceu que os
caminhos do futuro passavam pelos Estados Unidos. Brasileiros como
José Joaquim da Silva Xavier – o Tiradentes –, Monteiro Lobato e Anísio
Teixeira olharam a “América” de um modo inteligente – eles viram lá o que
Karl Marx também viu: as grandes possibilidades da boa idéia moderna: a
democracia. Ela, a democracia, tinha suas cartas na mesa no país da
bandeira listrada. Marx escreveu uma carta para Abraham Lincoln
felicitando-o pela vitória nas eleições presidenciais. Ele acreditava – e
estava certo – que o que haveria de importante para a democracia no
mundo tinha um caminho: aquele dado pelos Estados Unidos da América.
Os brasileiros mencionados acima também viram o que Max Weber
constatou e elogiou. Weber, na sua visita aos Estados Unidos, apreciou o
fato de o professor universitário americano poder vender conhecimentos
para todos que pagam – e mais de 50% dos estadunidenses pode pagar o
ensino superior –, o que dinamizava a vida cultural americana, ao
contrário da vida intelectual alemã, que ele via como burocratizada e
dominada por feudos e relações de poder.
A idéia de Marx, de que o pólo mais avançado de industrialização e
urbanização é que arrastaria, com seu modo de vida, o pólo menos
dinâmico, estava completamente correta. Nova York é a única cidade do
mundo onde realmente “tudo que é sólido desmancha no ar”, para
lembrar o slogan interno do Manifesto Comunista (1848) que buscava
caracterizar a modernidade. Marx via a América como o lugar onde “as
coisas iriam acontecer”. Essa foi uma sua visão que deu certo. A
democracia americana, como prática, está sendo observada pelo mundo todo. Para onde ela pender, o mundo penderá, ou a favor ou contra.
No Brasil, nossos heróis que também se inspiraram nos Estados Unidos,
foram os que se destacaram no panteão da Liberdade. Tiradentes é herói
da nossa pátria. Foi quem tentou organizar um levante pela
Independência brasileira de Portugal. Foi esquartejado pela Coroa
Portuguesa. Ele não desenvolveu seus ideais de liberdade rezando na
cartilha francesa, e sim na imagem da Revolução Americana. Monteiro
Lobato foi o nosso melhor escritor para crianças, e um clássico na
literatura adulta. Era simpático às idéias socialistas, embora ele próprio
fosse um homem que valorizava a “livre iniciativa”. Cultivou a América no
cérebro e no coração. Anísio Teixeira foi filósofo e pensador da
educação. Foi “o” nosso discípulo de John Dewey. Uma boa parte de
nosso sistema de ensino se estabeleceu moldado por idéias dele. Esses
foram os nossos pensadores que realmente “entenderam a América”.
Souberam ver os feitos da democracia. Infelizmente, nenhum deles
conseguiu influenciar muito diretamente o que se fez de filosofia no
Brasil.
Mesmo Anísio Teixeira, que foi o criador do nosso Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos (INEP) (um bom centro de documentação e
pesquisa em educação) e que esteve à frente de cargos importantes da
educação no país, não conseguiu quebrar o afrancesamento de nossos
departamentos de filosofia. Hoje, quando Paris, Berlim e Roma assistem
Nova York e esperam arrancar dali exemplos para testar soluções sociais
não só de ordem prática, mas de ordem da filosofia em geral e da filosofia
política em especial, na América Latina – especialmente no Brasil – ainda
estamos voltados para Paris, Berlim e Roma. Assim fazendo, nós mesmos
não conseguimos escapar do colonialismo. Pois nosso colonialismo
cultural não vem dos Estados Unidos, e sim da Europa. Não percebemos
aquilo que Antonio Gramsci percebeu: que somente a América, sem
superestruturas rígidas, poderia desenvolver um modo de vida inédito.
Nós, da América Latina, poderíamos agarrar a democracia estadunidense
para radicalizá-la? Para tal, teríamos, antes, de compreendê-la.
A democracia não é, nos Estados Unidos, um regime de governo, ela é
uma forma social de vida. Poucos estadunidenses, sejam eles
conservadores ou liberais, imaginam que se possa viver em um outro
lugar que não em uma democracia. Votar ou ser votado, representar ou
ser representado, tem lá sua importância, isso é sabido, mas o que é
realmente decisivo é viver sob a regra do aumento de oportunidades a
partir da conversação e da possibilidade de mostrar seu próprio know
how. Este é o ideal que não sai da cabeça dos que nasceram nos Estados
Unidos e dos milhares que não nasceram, mas que lutam para entrar no
país e usufruir da “América”. Essa noção de democracia, como os
americanos a criaram e internalizaram, é uma de suas mais originais
contribuições ao Ocidente.
Alguns críticos dos Estados Unidos pensam que os norte-americanos não
conseguem apreender o conceito de democracia. Atribuem a eles mais
etnocentrismo do que realmente possuem, como se todos norte-
americanos achassem que a democracia deles é a melhor e que, então,
estariam dizendo que valeria a pena, para o mundo, experimentá-la.
Alguns norte-americanos advogariam isso pela persuasão, outros, pela força – esta seria a única diferença entre os norte-americanos de
esquerda e de direita, garantem os críticos. Isso não é verdade. A
questão tem de ser posta de modo diferente.
Como modo de vida social, de fato os norte-americanos são os únicos que
possuem democracia. Em todos os outros lugares do mundo onde há
democracia ela é mais um regime de governo que uma forma social de
vida. Nos Estados Unidos, ela é a forma de vida da nação, de modo que se
a democracia desaparecer, desaparece tudo que conhecemos como
“América”. Os Estados Unidos nasceram de uma ruptura dura. Eles
romperam com a Mãe Inglaterra de uma forma violenta. Quiseram se
livrar do que era a vida européia. Então, tiveram de criar tudo que
criaram sozinhos, sem dogmas, fazendo o que tinham de fazer na
conversação entre pares – o que não excluiu o conflito, uma guerra civil e
uma série de disputas internas que beiraram o insuportável em
determinados períodos. Fazendo tudo que fizeram sozinhos, tiveram de
decidir em acordos parciais tudo que quiseram fazer em conjunto. Assim,
a teia democrática dos estadunidenses foi tecida junto com a teia social,
no cotidiano da construção da nação. Pode ser que vários norte-
americanos não percebam isso, ou seja, como eles fizeram a democracia
de um modo diferente. Talvez alguns estadunidenses acreditem que
democracia real, só eles mesmo possuem. E que só é democracia aquilo
que eles construíram – como vida social. Estão errados, de um ponto de
vista. Mas estão certos quando insistem que a experiência democrática
norte-americana é intrínseca à “América”. Alexis Tocqueville, mesmo
apontando os males da democracia, não disse que a democracia
americana seria uma forma de governo. Ele escreveu o livro Democracia
na América considerando, perfeitamente, os Estados Unidos como uma
nação inerentemente democrática. Democracia é sinônimo de América
em seu célebre livro. Nunca deixará de ser, pois são conceitos que
nasceram assim na modernidade. “democracia” e “América”, antes de
tudo, são conceitos.
A “América”, para os pioneiros que criaram os Estados Unidos, foi
estampada claramente nos poemas de Walt Whitman – o lugar de se
construir o diferentemente rico, o plural, a geração de tipos diferentes.
Ao agruparmos os poemas deste com o que escreveu John Dewey,
damos o passo correto para o conceito de “democracia” em sua ligação
com o conceito de “América”. Dewey diferenciava “América” e “Estados
Unidos”, e essa diferença é necessária para levar em conta o conceito de
“América”, o conceito de “democracia” dos norte-americanos e, então,
começar a entender os caminhos da filosofia política norte-americana.
Resumindo ao máximo: “América” é o sonho de liberdade dos pioneiros e
Pais Fundadores, mas que luta contra os “Estados Unidos”, que é o
“complexo industrial militar” dos grandes grupos econômicos e dos que
querem fazer da democracia uma plutocracia.
Essa divisão puramente conceitual - não geográfica - entre “América” e
“Estados Unidos” permitiu a John Dewey ver mais além que outros
escritores e filósofos de sua época. Sidney Hook, um filósofo norte-
americano que procurou unir Marx e Dewey, escreveu em 1939 em seu
livro John Dewey – an intellectual portrait que a análise de Dewey em
Liberalismo e ação social era para o século XX o que o Manifesto
Comunista foi para o século XIX. A idéia básica de Dewey era a de que o
capitalismo agregado ao liberalismo, com o passar do tempo, não havia dado condições de sobrevida para o liberalismo, e que isso teria se
agravado mais ainda em uma nação de bases agrárias que se
industrializou de modo monstruoso e rapidamente. Assim, o liberalismo
individualista dos primeiros tempos deveria dar espaço para um
liberalismo com planejamento, no século XX. No panorama europeu, isso
recebeu o nome de “social- democracia”. No panorama norte-americano,
isso se chamou de liberalismo social ou liberalismo radical ou novo
liberalismo. Na Europa, isso foi levado adiante após a II Guerra Mundial
por partidos de base intelectual marxista e operária, os social-
democratas que chegaram ao poder em vários lugares ou que, mesmo
não chegando ao poder, forçaram os que estavam no poder a realizar
parte de seus programas sociais. O economista ligado a tal política foi
John M. Keynes. Nos Estados Unidos essa política foi iniciada bem antes
da II Guerra Mundial, pelo “New Deal” de Roosevelt, que tirou o país da
Grande Depressão. Na Europa, tudo isso se fez em meio a trocas de
regimes políticos, sendo que alguns eram democráticos. Nos Estados
Unidos, em nenhum momento a democracia deixou de estar vigente.
Democracia não é regime de governo nos Estados Unidos, por isso, não
havia o que trocar. Os norte-americanos nunca usaram a palavra Govern
para Governo, como nós brasileiros; sempre usaram a palavra
Administration para Governo. A idéia de Administration é a idéia de ter
um mandato a ser cumprido, sempre sobre a base social que forma o
modo de vida, a democracia.
Bem, dito isso, podemos perguntar onde é que estariam as falhas da
democracia americana. Os problemas gerais se encontram exatamente
no que foi levantado por Marx: pode a democracia conviver com o
capitalismo ou ele é o coveiro desse modo de vida? A resposta de Marx
para tal questão foi simples: a democracia que vivemos é a “democracia
burguesa”, e deve ser ampliada de modo a se auto-superar
dialeticamente, pois caso contrário ela mesma irá desaparecer levando
consigo toda a civilização. Pois o capitalismo não é mais amigo da
democracia, é seu inimigo mortal, mas ele próprio pode gerar a
destruição de tudo, nos levar à barbárie. A “democracia burguesa” deve
vir abaixo em favor da “ditadura do proletariado”, uma vez que a
“democracia burguesa” é, na verdade, a “ditadura da burguesia”. A
“ditadura do proletariado” é um passo para abolição das classes sociais
e, então, a abertura para a democracia verdadeira – a realização na Terra
do melhor conceito de democracia, o comunismo.
A solução marxista foi experimentada na forma de leninismo e, depois, de
estalinismo, ou do sovietismo em geral. O comunismo se mostrou incapaz
de manter os ganhos de liberdade e de igualdade que a chamada
“democracia burguesa” nos havia dado. E pior, ao sufocar o capitalismo –
a economia de mercado – o regime de tipo soviético favoreceu o fim da
possibilidade da modernização tecnológica chegar às pessoas. Tal
modernização, esta sim, não era só o “consumismo”, tão criticado por
anticapitalistas de toda ordem, mas também a possibilidade de
ampliarmos nossas chances de manutenção da liberdade individual. A
Internet, os telefones celulares, a computadorização geral da vida, a
capacidade de comunicação via cabo ou via satélite, a TV interativa, etc.,
foram as conquistas de uma tecnologia que dá ao indivíduo poderes de
afrontar grupos e governantes, ainda que estes lutem para que tal poder
volte para suas mãos. O avanço tecnológico e sua socialização não
ocorreram no comunismo.Assim, a filosofia política deu sua “guinada para a América”. A idéia
básica, no interior de tal guinda, é a de que precisamos de uma teoria
para o aperfeiçoamento do liberalismo, da democracia e, agora também,
do próprio Welfare State associado à democracia. Pois a solução de
“superar dialeticamente” a democracia não foi uma boa saída. Aliás, diga-
se de passagem, a própria dialética passou a ser vista como apenas uma
fraca retórica – e mal arrumada –, e não, é claro, a forma de
desdobramento da História, como queriam alguns marxistas.
Então, voltamos nossos olhos para a filosofia política estadunidense. O
que ela tem feito a respeito da própria democracia vigente nos Estados
Unidos e a respeito da possibilidade do conceito de “América” ainda
manter sua boa relação com o conceito de “democracia”?
Todos nós sabemos que a democracia americana não é o paraíso na
Terra. A democracia americana, quando funciona bem ou quando não
funciona bem, é sempre problemática. Alguns perdem muito, ainda que
outros ganhem, quando as coisas não vão muito bem. Alguns perdem
pouco e outros não perdem, quando as coisas vão bem. Alguns até
ganham e outros não perdem muito, quando as coisas vão melhor. A
filosofia política norte-americana acredita que pode dizer mais coisas
úteis do que já disse, para o melhoramento da democracia. O que se quer
é que todos percam muito pouco, e que alguns até ganhem, mesmo
quando as coisas não vão muito bem.
A filosofia política produzida nos Estados Unidos nos últimos anos criou
teorias preocupadas com os problemas advindos da democracia que,
enfim, podem ser vistos como problemas equacionados em ecos do que
Dewey escreveu. Pois o que ele escreveu, como bem notou Sidney Hook,
deu a moldura do século XX a respeito da filosofia social em sua
apreensão do liberalismo. A Grande Depressão é, ainda, o que paira no
ar. Pois os problemas que ela estampou nos rostos dos estadunidenses, e
as soluções que engendradas para se sair dela, é o que resume o
“problema da democracia americana”. As soluções encontradas pelo
New Deal não foram todas angelicais. Não cabe aqui enveredar por
detalhes de economia. O problema aqui, eu mantenho, é o de filosofia
política. Assim, não vou identificar as questões econômicas que poderiam
estar atrapalhando a democracia americana hoje. Vou direto para o que
os filósofos políticos propuseram com o objetivo de fazer a engrenagem
democrática continuar se movendo.
Quais problemas que a filosofia política poderia equacionar,
considerando os Estados Unidos e sua democracia? Com certeza,
problemas de duas ordens: 1) problemas internos aos Estados Unidos a
respeito de direitos individuais e de justiça social; 2) problemas externos
dos Estados Unidos, ou seja, o de relacionamento com os que estão sob o
teto não democrático ou que não vivem segundo os padrões modernos do
Ocidente.
Para cada um dos problemas acima, os Estados Unidos forneceram ao
mundo uma filosofia política de primeira linha. Robert Nozick escreveu
sobre direitos individuais (e propriedade), John Rawls escreveu sobre
igualdade e justiça e Richard Rorty escreveu sobre lealdade. Ainda que
existam vários outros filósofos políticos, com teorias bastante
interessantes, esses três autores são paradigmáticos para o que exponho aqui.
Robert Nozick é o autor do clássico Anarchy, State and Utopia (1974),
onde advoga que os direitos básicos são os de vida, liberdade e
propriedade. Todavia, é o direito de propriedade – a propriedade
legalmente adquirida – que pode, de certo modo, ser a base para outros
direitos. Um estado que infrinja esse direito começaria a promover a
injustiça, seja ele um estado democrático ou não. Assim, qualquer que
seja o modo de distribuição de dinheiro que a democracia possa
promover, se insistir em tal tarefa, estará infringindo um direito básico,
que é a garantia da propriedade legal, o que iniciaria uma situação de
corrupção dos direitos.
Em geral, o contraponto a este tipo de pensamento no plano liberal é de
John Rawls, no seu clássico Theory of Justice (1972). A parte central do
trabalho explicita dois princípios para um novo e hipotético contrato
social. O primeiro princípio diz que cada indivíduo tem de ter o direito à
máxima igual liberdade compatível com uma liberdade do mesmo tipo
para todos. O segundo princípio tem duas partes; na primeira parte
afirma-se que as diferenças sociais e econômicas têm de estar atreladas
à abertura igual para todos de empregos e posições, em condições justas
de igualdade de oportunidades; na segunda parte fala-se que as tais
diferenças são justificadas somente se dão vantagem em uma situação
pior. O primeiro princípio tem prioridade sobre o segundo. Tais princípios
não são regras para a política propriamente dita, mas leis para o
funcionamento melhor da sociedade como um todo, em sua dinâmica total
que interliga política, economia e vida social como elementos da
estrutura da comunidade moderna justa.
O debate entre rawlsonianos e nozickinianos é, em grande medida,
atinente ao funcionamento interno da democracia – em especial a
democracia estadunidense. O ponto de atenção de Richard Rorty,
principalmente em seus Philosophical Papers (três volumes publicados
entre 1991 e 1998; no Brasil, traduzi alguma coisa em Pragmatismo e
filosofia (Martins, 2005) e Para realizar a América (DPA, 2000)), no que
este filósofo tem de diferente dos outros, é o modo como ele propõe
redescrever termos da polêmica ético-política a respeito de como o
Ocidente pode lidar com “os outros”. Rorty fornece meios para uma
alteração da política externa da democracia estadunidense.
Em geral, quando “os outros” agem de maneira a serem leais em relação
a seus clãs e nações, eles são acusados de praticarem atos não racionais
e, no limite, não morais. Segundo tal raciocínio, quem é leal ao clã não
pode ser devoto da humanidade e servo da razão, e então estará sempre
na iminência de cometer falta moral. Esta forma de pensar, para Rorty,
advém da ética ligada à idéia de que regras morais são produtos da razão
ahistórica. Para ele, uma ética que leve em consideração a gênese de
nossos procedimentos morais, mostrará que aprendemos como
“comportamento moral” antes a lealdade aos que estão mais próximos –
família ou clã, e depois cidade ou nação – do que a lealdade aos que estão
mais distantes. Assim, se a moralidade é construída historicamente, não
há como não entendê-la como sendo graus de lealdade. Descrevendo a
moralidade segundo graus de lealdade, poder-se-á, talvez, dizer dos
“outros” que eles, ao serem fiéis a interesses que parecem particulares
para “nós”, estão sendo tão morais quanto aqueles que fizeram de seus grupos a humanidade e de seu deus a razão.
Ficaria mais fácil solicitar aos “outros” que se sentassem à mesa de
negociação se os tratássemos como tão morais quanto “nós”. Não é difícil
assim agir, uma vez que o que está em questão é a lealdade ao que
fornece mais vínculos, sendo que é a lealdade, segundo este
entendimento, o elemento originário da moralidade. Ficaria mais fácil
solicitar a “nós” que sentássemos à mesa de negociação se pudéssemos
admitir que a chamada “humanidade” não vai aderir ao que é a “nossa
causa” imediatamente, uma vez que tanto “nós” quanto esse grupo
enorme que é denominado de “humanidade” ganha seus fiéis de maneira
paulatina, a partir da modificação que fazemos em relação às nossas
lealdades iniciais, que são para com o clã, cidade, nação etc.
A propriedade adquirida por meios legítimos (de Nozick), a igualdade
liberal (de Rawls) e os laços de lealdade como bases da construção moral
(de Rorty) formam, sem dúvida, um conjunto de idéias que compõem um
legado intelectual, bastante atual, que vem do Norte e que, se absorvidos
por nós, brasileiros, não deixaria nem Tiradentes, nem Lobato e nem
Anísio Teixeira descontentes. Eles ficariam felizes se nossa juventude
pudesse aprender a distinguir o que John Dewey distinguia, ou seja,
“América” e “Estados Unidos”. Achariam úteis os equacionamentos de
Nozick, Rawls e Rorty aos problemas da democracia americana enquanto
Welfare State.
Mas tudo isso, possui condições de ser ponderado no Brasil? Creio que
sim. Cada vez mais o Brasil dá passos no sentido de se convencer que
talvez não tenhamos muito que fazer fora do liberalismo e da democracia,
e que isso não será uma restrição à imaginação ou ação. Ao contrário, se
tivermos de procurar soluções para o liberalismo e para a democracia, o
que o pensamento norte-americano nos mostra é que o debate é rico e
fértil. Só aparentemente estamos em um campo mais estreito de
pensamento – a tal da idéia do “pensamento único” foi um sonho no qual
Pierre Bourdieu quis acreditar pois isso dava sobrevida ao seu marxismo.
Nunca existiu “pensamento único”, que teria ficado vigente por causa do
mundo ter optado por viver sob o capitalismo e por conta dos filósofos
políticos terem se interessado em se manter, quase todos eles, como
democratas. Pois não há consenso sobre como fazermos o liberalismo, a
democracia e o Welfare State melhorarem. Se há um consenso, é o de
que teremos de nos acostumar a ver o debate ser cada vez mais interno.
Ou seja, interno ao liberalismo e à democracia, em parte, ao Welfare
State. Os debates da filosofia social e política serão cada vez menos
ligados a problemas tais como “socialismo versus capitalismo”. Cada vez
mais os debates serão em torno de questões internas à democracia e ao
liberalismo. E isso no sentido de que os problemas serão os de ampliação
de direitos individuais, criação de novos direitos, capacidade de fazer
valer a vontade da maioria sem que isso signifique esmagamento de
minorias, ampliação de chances de realização pessoal, ampliação de
chances de felicidade individual, tomando esta não apenas como bem
estar espiritual, mas também como capacidade de usufruir livremente,
sem dano, de prazeres corporais. Nossa agenda, tudo indica, será
composta por tópicos que não mais descartarão a democracia – ao
menos no que se refere menos à política e mais à filosofia política.
©São Paulo, dezembro de 2005.
Portado por professor Robério as 17:13:00

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